Publicado em 20/03/2017A demora da Polícia Federal em agir contra frigoríficos que adulteraram carnes, inclusive com o uso de itens vencidos na fabricação de alimentos industrializados, provocou perplexidade no setor privado, conforme diversas fontes ouvidas pelo Valor desde sexta-feira, quando foi deflagrada a Operação Carne Fraca.
Diante do estardalhaço provocado, a avaliação dos críticos, dentre os quais membros do Ministério da Agricultura, é que a condução "espetaculosa" da investigação colocou sob suspeita toda a carne produzida no Brasil - o produto seria "podre e adulterado" do Oiapoque ao Chuí -, não diferenciando ou ponderando sobre a gravidade de cada uma das irregularidades sob investigação.
Além de alarmar os consumidores brasileiros sobre a sanidade do produto nacional, a Operação Carne Fraca repercutiu no exterior, e é uma ameaça concreta às exportações de carnes.
A confusão, que mobilizou o Palácio do Planalto durante o fim de semana, resultou, na tarde de ontem, em reuniões do presidente Michel Temer com representantes de produtores e de indústrias exportadoras de carnes e com embaixadores de dezenas de países. Em pronunciamento após as reuniões, Temer procurou tranquilizar a população e defender a fiscalização sanitária.
Durante o pronunciamento, Temer convidou embaixadores e diplomatas de mais de 40 países para jantar em uma churrascaria em Brasília. Vinte e sete compareceram. Após o encontro, Temer afirmou que os representantes que participaram disseram que vão levar a seus países uma mensagem de tranquilidade sobre a carne brasileira.
"Eles disseram que vão advogar junto a seus países e ficaram de divulgar a tranquilidade em relação ao consumo da carne", disse, repetindo os dados que respaldam a tese do governo de que o problema é localizado, como o fato de o caso envolver 33 servidores em um universo de mais de 12 mil e 21 estabelecimentos em quase 5 mil.
Ele afirmou não ter havido excesso da Polícia Federal. Os embaixadores do Chile e de Angola confirmaram que, de fato, levarão uma mensagem positiva. Mais cedo, o embaixador da União Europeia, João Cravinho, afirmara que, no caso do bloco, "a bola agora está com Bruxelas".
Ainda na tarde de ontem, logo após o pronunciamento de Temer, o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, criticou a jornalistas a "narrativa" da Operação Carne Fraca e a falta de "amparo técnico" da investigação, o que teria levado a equívocos em algumas conclusões da operação.
Blairo também afirmou ter questionado o diretor-geral da Polícia Federal, Leandro Daielo, sobre a ausência do Ministério da Agricultura nas investigações para dirimir eventuais dúvidas técnicas. Segundo ele, Daielo teria respondido que isso ocorreu porque alguns funcionários do Ministério da Agricultura eram os investigados.
Apesar de ter compreendido a razão, Blairo não deixou de citar exemplos de conclusões equivocadas que poderiam ser dirimidas pelos técnicos da Pasta. Entre elas, citou a presença de cabeça de porco na produção de linguiça que, de acordo com ele, é permitida em alguns percentuais. "Não houve laudos até agora dos processos, mas quero crer que a investigação tome um novo rumo de agora em diante", acrescentou.
Ao Valor, uma fonte da indústria também indagou, em tom irônico, sobre a responsabilidade da Polícia Federal na alimentação dos brasileiros, dadas evidências sobre graves problemas ocorridos em frigoríficos menores. "A polícia ficou dois anos vendo as coisas acontecendo e deixou? Não é um pouco engraçado?".
De fato, algumas das irregularidades que mais chamaram a atenção e revoltaram os consumidores do país ocorreram há muitos meses. Em interceptação telefônica de maio de 2016, o empresário Paulo Sposito, dono do Frigorífico Larissa, aparece autorizando o uso de paletas suínas que já estavam vencidas desde fevereiro daquele ano.
"Achamos umas paletas 127, que estão vencidas desde fevereiro. Manda embora ou deixa na produção pra eles usar?", perguntou um funcionário. "Deixa na produção pra eles usar (...)", respondeu Sposito. Esse diálogo consta da página 27 da representação feita, em 27 de janeiro deste ano, pela Polícia Federal ao juiz da 14ª Vara Federal de Curitiba (PR).
A investigação da Polícia Federal também foi bastante criticada por um caso que, na sexta-feira, parecia ser um dos mais simbólicos e negativos: a mistura de papelão na produção de CMS (carne mecanicamente separada), subproduto usado para a fabricação de itens como nuggets.
A "carne de papelão", que viralizou nas redes sociais, ganhou manchetes especialmente depois do vazamento de uma interceptação telefônica entre dois funcionários da BRF da planta de Carambeí, no Paraná. No diálogo captado, um funcionário diz: "O problema é colocar papelão lá dentro do CMS também, né? Tem mais essa ainda. Eu vou ver se eu consigo colocar em papelão. Agora, se eu não conseguir em papelão, daí infelizmente eu vou ter que condenar [a carne]", afirmou.
Em nota, a BRF diz ter havido um "grande mal-entendido na interpretação". Segundo a companhia, o funcionário se referia à embalagem do produto. "Isso fica ainda mais claro quando ele diz que vai ver se consegue "colocar EM papelão", ou seja, embalar o produto EM papelão, pois esse produto é normalmente embalado em plástico", apontou a empresa, acrescentando que, na continuidade do diálogo, o outro funcionário indica que, se não obtiver aprovação para a mudança da embalagem, teria de descartar o produto - a CMS.
Aos jornalistas, Blairo fez duras críticas à interpretação feita sobre o episódio. "Está se falando que havia papelão dentro de carne, mas na verdade os áudios estavam se referindo a embalagens. Isso [papelão na carne] não existe. É idiotice", afirmou.
Sem citar esse problema especificamente, o ministro disse que algumas falas da coletiva de imprensa da PF na sexta-feira não apareciam no "inquérito". Na representação feita ao juiz em janeiro, a PF não incluiu o caso sobre o papelão, tampouco pediu medidas - prisões, condução coercitiva ou busca e apreensão - contra os funcionários do frigorífico da BRF em Carambeí. Segundo um investigador, havia fatos menos controversos para serem incluídos na representação do que o caso do papelão, cuja investigação precisa ser aprofundada para se chegar a uma certeza.
Mas as fontes dos setores público e privado ouvidas pelo Valor não se restringiram às críticas. Os relatos de corrupção e relações "pouco republicanas" entre representantes da indústria de carnes e fiscais agropecuários causaram constrangimento. "Eles vão ter que pagar pelo que fizeram", disse uma fonte da indústria de carne.
"O sindicato é totalmente a favor da apuração rigorosa e da punição dos envolvidos. O sindicato não se coaduna com essas práticas", lamentou o vice-presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical), Marcos Lessa. Dentre os funcionários públicos investigados, a maioria pertence a essa categoria.
Líderes em carnes no país, JBS e BRF também sofreram um forte baque. Na sexta-feira, as companhias perderam, juntas, R$ 5,8 bilhões em valor de mercado na BM&FBovespa. E o caso lança dúvidas sobre os IPOs planejados pela JBS nos EUA e pela BRF em Londres - para sua subsidiária OneFoods.
Entre outras coisas, a Operação Carne Fraca levantou suspeitas sobre a atuação de executivos da BRF e sobre a regularidade da unidade da companhia em Mineiros (GO). Os investigadores suspeitam que a empresa teria pago propina para evitar o fechamento da planta. Na própria sexta-feira, o Ministério da Agricultura decidiu interditar a esse frigorífico. Duas unidades da Peccin Agro Industrial também foram interditadas pelo ministério.
Entre os executivos da BRF que foram alvo da Carne Fraca estão o gerente de relações institucionais, Roney Nogueira dos Santos, e o diretor para o Centro-Oeste, André Luis Baldissera. Ambos foram presos preventivamente. Entre as suspeitas está a de que Roney teria atuado pela transferência de fiscais.
A JBS, dona da Seara, não teve executivos implicados, mas o veterinário Flavio Cassou, funcionário da unidade de Lapa (PR), também foi preso preventivamente. As relações de Cassou com a chefe do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura no Paraná, Maria do Rocio Nascimento, são investigadas. Antes da ingressar na Seara, Cassou atuava como fiscal lotado na própria planta da Seara, apontaram os investigadores. Cassou também teria patrimônio não compatível com a renda declarada Com informações do Valor.